domingo, 10 de outubro de 2010

Entrevista: Amyr Klink (1/3)

Amyr Klink é comandante da embarcação. Natural de São Paulo, filho de pai libanês e mãe sueca. Começou a freqüentar a região de Paraty (RJ) com a família quando tinha apenas dois anos de idade. Essa cidade histórica do litoral brasileiro é o lugar que o inspirou a viajar pelo mundo. Casou-se em 1996 com a Marina Bandeira, com quem tem as filhas gêmeas Tamara, Laura e a Marininha.

Desde 1965 coleciona canoas antigas. No terreno esportivo, foi remador pelo Clube Espéria (SP) e à partir de 1978 começou a realizar grandes travessias. Uma das mais marcantes foi em 1984 onde realizou a primeira travessia do Atlântico Sul a Remo em Solitário. Depois preparou-se para ir à Antártica lugar que acabou retornando várias vezes.

Sempre muito curioso procurou desenvolver os seus próprios barcos utilizando novos conceitos construtivos.  Aplicou também essas novas técnicas em produtos de uso cotidiano, submetidos a condições extremas e produzidos com a preocupação de não agredir o meio ambiente. Dentre vários livros, os mais conhecidos são: "Cem dias entre céu e mar", "Paratii - Entre dois pólos", "As janelas do Paratii" e “Mar sem Fim”.

Formado em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em Administração de Empresas pela Universidade Mackenzie, o navegador é diretor da Amyr Klink Planejamento e Pesquisa Ltda e da Amyr Klink Projetos Especiais Ltda. Também foi (é) Sócio-Fundador do Museu Nacional do Mar, em São Francisco do Sul (SC), e da Revista Horizonte Geográfico.

 É membro da Royal Geographical Society e Assessor de Expedições da Revista National Geographic Brasil.

Vicente Morisson: Praticamente desde que nasceu você começou a ter contato com o mar na região de Paraty (RJ). Quando começou a paixão por barcos?
Amyr Klink: Começou por 2 razões. Primeiro a convivência com a cidade de Paraty aonde meu pai foi antes da abertura da estrada entre 1955 e 1956, mais ou menos o ano que eu nasci. Ele conheceu Paraty devido a um acidente de avião. Acabou caindo em Barra Grande e foi para Paraty de mula. Ele ficou encantado com a região e adquiriu muitas propriedades, muitas fazendas.

Ele era um visionário e não era um cara empreendedor. A maior parte dessas propriedades ficaram paradas um tempo. Como Paraty era uma cidade de curvas geográficas e por um terceiro desastre econômico entrou numa crise forte naquela época. Então, a cidade estava isolada e tinha um ambiente diferente, num período do Brasil que as coisas estavam em ebulição. Eu freqüentei a cidade à partir dos dois, três anos de idade, de 1957 pra frente me encantei com a cidade.

Mas eu não tinha ainda essa visão dos barcos, esse conhecimento, mas acho que descobri isso através da literatura quando já era bem mais velho, quando já lia. Comecei a ler, li primeiro a Expedição Kontik e fiquei fascinado com o relato do Thor Heyerdahl. E aí, aos poucos, comecei a me interessar pelas canoas. Nunca liguei muito por jogar bola, eu gostava de sair para passear de canoa, de visitar as prainhas distantes de canoa. Paraty tem essa característica, que tentam eliminar a todo custo, onde o acesso é feito pelo mar. Desde pequeno eu já me interessava por esses assuntos ligados a locomoção pela água, ao invés, de estrada. Eu nunca gostei muito de estrada, carro, essas coisas que fascinam nós urbanóides. Paraty era quase uma Veneza. A maré entra nas ruas, você vai em quase todos os lugares da cidade usando os rios, os canais são abertos, ou seja, a locomoção entre as regiões do município são acessadas pelo mar no modo de se comunicar.

Eu tenho um apreço muito especial pelos livros, por esse privilégio de ter podido desenvolver um gosto pela leitura. Não sei se é gosto a palavra, mas o fato é que lá em casa todo mundo lia muito, em vários idiomas, meus pais falavam em torno de 5 a 6 idiomas cada um. Então, nos livros, eu fui descobrindo. Eu não falava idioma nenhum, aí eu resolvi aprender quatro idiomas. Comecei a ler horrendamente. Foi aí que nasceu uma conexão entre as canoinhas, aparentemente simplórias de Paraty e os barcos que viajavam pelo mundo e depois eu vi que elas não tinham nada de simplória, que são obras primas.

VM: O que mais lhe marcou na sua primeira grande travessia, aos 29 anos, ao percorrer 7.000 km durante cem dias numa embarcação a remo, o Paraty, no Atlântico Sul? Como foi construir o Paraty? O que representava estar naquele imenso oceano?
AK: O que mais me marcou não foi a travessia, a travessia foi a coroação de um desejo pessoal muito forte. Quando eu entendi que era viável fazer, não me assustava mais, pelo contrário, mas tudo foi muito difícil desde o projeto do barco. Primeiro, com um argentino alcoólatra, que nunca terminou o desenho técnico. Depois, foi um construtor super famoso em São Paulo, que fez os mais lindos barcos de madeira que já foram feitos no Brasil, me deu um cano. Recebeu o dinheiro para comprar madeira e esqueceu. Está até hoje fazendo o barco lá.

Acabei construindo o barco no Rio de Janeiro, na baixada Fluminense, no Vilar dos Teles, que era um distrito de Nova Iguaçu, que era bem o coração da baixada, lugar difícil, mas foi o único lugar do Brasil que eu achei para construir o barco e foi muito bem contruído. Feito em madeira moldada, e eu tive a sorte de encontrar um espanhol, muito mal humorado e pentelho, mas que amava trabalhar com madeira, que botou todo o coração dele, todas as ranzinzas dele pra fora e acabou o barco.

Depois foi a parte burocrática pra mandar o barco para a África e por último foi uma quase guerra que eu travei com as autoridades da África do Sul, que controlavam e ocupavam a Namíbia pra poder começar a viagem. Virou um assunto de notícia política na África do Sul. Noticiavam: “Mais um louco vai tentar fazer a travessia do Atlântico“ e eu não sabia que tinha três militares sul-africanos que já tinham tentado fazer a travessia, morreram, custou uma bala as tentativas de resgate, mas os resgates nunca ocorreram. Por incrível que pareça nada foi mais impressionante do que essa fase, que por vários fios de cabelo, tudo poderia ter nunca acontecido.

No final, a sensação foi a melhor experiência que eu tive na minha vida. Tudo o que eu queria era estar livre daquelas encrencas burocráticas, poder remar no meio do Atlântico, atravessando numa obra de paciência, onde só podia contar com o esforço do braço e um pouco de inteligência. Na verdade, a minha participação física estava sujeita ao modo como eu entedesse, decretasse tudo que eu passei, como as correntes, os ventos, as ondas para poder suplantar as dificuldades. Essa foi a razão pela qual eu consegui passar por um ciclone do Atlântico Sul. A viagem era uma curva e não uma reta. Foi uma experiência interessante.

Era também um mundo muito mais bacana, pois não tinha métodos de comunicação que temos hoje, como comunicação satelital. Não tinha noção de posição que hoje qualquer carro, ônibus, carrinho de sorvete tem. Naquela época não tinha GPS! Alí levava quatro, cinco dias para conseguir ter uma idéia aproximadamente daonde eu estava. Cheguei a ficar longos períodos de mais de dez dias, sem a menor sombra de idéia se eu estava de fato me aproximando do Brasil, ou indo pra Groelândia, ou pra Antártica. Eu não sabia exatamente o que acontecia. A sensação que, infelizmente, não existe mais, a menos que você atire o GPS no mar.



VM: Entre tantos desafios você chegou a dar a volta ao mundo durante 79 dias, sozinho, nos mares mais temperamentais do planeta. O que lhe motiva a realizar esses desafios e como é estar sozinho no mar?
AK: Primeiro, eu não vejo como desafios. Também não gostaria de chamar de aventura, não que eu não goste, eu gosto de aventuras, às vezes, gosto de encher a cara, ir pra algum lugar e não saber se vou voltar, só para sair do cotidiano.

No assunto, de viagem de barco eu não quero aventura, eu não quero. Quando quero viajar com a minha família para a Antártica eu quero ter certeza que no dia quinze de Dezembro, por exemplo, nós vamos estar na ponta Damoy na Antártica e abrir um Cabernet Sauvignon que a gente tem lá. Eu quero ter certeza. Não quero que seja no dia quatorze, quiça no dia vinte ou talvez só em Janeiro.

O que me motiva mais é um envolvimento emocional com a idéia de fazer viagens que aparentemente eram difíceis, mas depois da primeira eu estou convencido que é necessário muito menos esforço. Eu tive a sorte também de não ser vinculado, tecnicamente, a um meio náutico, porque senão eu acho que estaria com um monte de vícios e talvez uma visão um pouco tendenciosa de como tem que ser um barco.

Eu acho que essa experiência do Paraty pra mim foi produtiva porque eu aprendi a pensar no lado simples dos barcos, ou seja, da eficiência, da autonomia, o prazer de idealizar soluções complicadas de modo simples. Eu tenho uma profunda adoração por fazer isso. Embora eu não seja formado na área técnica, eu gosto. Um barco é uma entidade que representa, por si só, um desafio complexo e onde tem sempre coisas interessantes que podem ser melhoradas, que não passa pela cabeça dos especialistas. Então, esse lado técnico me motiva bastante.

VM: Como entra a espiritualidade na sua vida? Você é adepto a alguma religião? Tem algum tipo de prática pessoal?
AK: Puxa vida, nem sei como lhe responder. Eu não sou ligado a espiritualidade. Meu pai era yogui. Eu peguei uma aversão a qualquer tipo de manifestação religiosa. Eu respeito profundamente, mais do que quem presta uma religião, mas religião é um assunto que eu não gosto.

VM: Navegando por muito tempo você, provavelmente, já enfrentou algumas situações de risco. Qual foi a mais marcante de todas?
AK: O tempo inteiro você está sujeito a condições fortes de mar. A gente sabe e qualquer um a bordo sabe, que basta uma falha mecânica, uma decisão errada, uma manobra mal feita, um nó mal dado e você perde tudo, talvez, a própria vida.

As situações que mais me marcaram foram situações prosaicas onde você não visualiza de imediato o risco e depois que passa você percebe o que poderia ter acontecido era uma encrenca muito maior. Essas situações, às vezes, acontecem de modo quase imperceptível. Esse ano nós tivemos a quinta viagem com as nossas filhas para a Antártica e foi a primeira vez em 25 anos, 35 viagens para a Antártica que eu consegui passar pelo Golet, uma passagem mitológica da Antártica. Tivemos um quase acidente, um encalhe muito perigoso, numa passagem, numa garganta com o gelo fechando e isso pareceu a maior emoção da vida. Depois na volta quando a gente estava retornando para o Brasil, a gente percebeu o perigo que a gente passou não foi nada disso.

O grande perigo mesmo foi uma besteira que aconteceu no embarque da gasolina em Santos. No dia do Natal, o caminhão de combustível atrasou e o pessoal estava de mal humor, pois deveria estar querendo passar o Natal em casa. A gente mexeu com 4.000 litros de gasolina sem álcool e com uma octanagem altíssima. Essa história poderia ter voado pelos ares. Por muito, muito pouco, houve uma pane elétrica e a gente não explodiu. Então, normalmente, é isso que acontece.

O maior acidente que eu tive em vinte poucos meses de permanência na Antártica na primeira vez que eu fui para lá, sozinho, foi um acidente com o fogão. Esqueci os botões do fogão abertos, soltei treze quilos de gás e quase virou uma bomba. Então, tem um monte dessas histórias. Em 1998 eu fiquei impressionado com as famosas tempestades da Sidney-Hobart. Estava numa posição muito frágil e muito próximo da Antártica. Tinham ondas de mais de vinte e cinco metros que durou muito tempo, setenta horas. Foi uma comoção geral na Austrália, pois essa tempestade matou várias pessoas. A gente tentando acompanhar isso pelo rádio, sem entender bem porque o mar estava tão violento, mas aí eu falei, bom, mais um dia de problema!




VM: Você tem medo da morte? Como a encara?
AK: Bom, não me alegra muito a idéia de morrer (risos), mas também não é uma afirmação minha quando a gente está nesses lugares. Em certas situações, a gente sabe que o mínimo de descuido e a gente morre. Eu convivo, digamos bem, com essa possibilidade de morte. Tem coisas que eu sei que se eu escorregar lá, ou se eu não conseguir enfiar o parafuso da manilha, eu vou morrer. Eu sei. Então, alguém tem que ir lá. Eu gosto de ir lá, gosto de tomar a iniciativa e fazer.


Nessa hora, sinceramente, mesmo sabendo que eu posso morrer eu não fico pensando nisso. Eu trato esse assunto com um certo bom humor. Até a bordo a gente faz piada. Tem gente que acha que é humor mórbido e eu digo: oh, qualquer coisa você cuida das crianças, se não der certo o que eu tenho que fazer lá na popa. Mas, eu acho que é importante a gente ter consciência da morte. Me recordo daquele discurso famoso do Steve Jobs quando ele foi convidado para ser paraninfo da Universidade de Stanford. Ele fala sobre essa perspectiva da morte e que foi importante para ele.








VM: Depois que você teve as suas filhas você acha que elas fizeram você encarar o mar de outra forma? Caso sim, como?
AK: Eu acho que acabou um pouco o bom humor em relação a esse trato com a morte. Agora, não posso ser mais egoísta sabendo que posso morrer se algo não der certo. Imaginando que posso deixar as meninas desamparadas passei a pensar de um modo diferente.

Não é ruim, acho que foi até melhor. Muita gente fala você agora não vai mais viajar. Viajei muito mais por causa delas e acho que foi uma experiência positiva. Para falar a verdade, casei velho e não tinha planos de ter filhos. Foi uma grande alegria que a gente teve com a vinda das três.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Acomodação em relação a quê?



A acomodação é necessária em relação a pessoas, mas não em relação a ideias. Uma pessoa que tem crenças que na minha percepção são engraçadas, ou equivocadas, não deve deixar de poder ser meu amigo. O direito ao livre pensamento deve existir. Podemos e devemos acomodar a pessoa, mas não podemos acomodar as noções erradas.

Imaginemos agora que eu aponto para uma rosa e digo: “olhem para este papagaio”. Talvez alguém dê o benefício da dúvida e pergunte: “ele disse papagaio?!” Só damos o benefício da dúvida até verificarmos. Depois de confirmarmos, não podemos acomodar a minha noção errada. Não podemos acomodar porque o conhecimento da rosa não depende da nossa vontade. Não é puruśa 

tantram jñānamNós não decidimos que isto é rosa ou papagaio. Se é uma rosa, é uma rosa. O conhecimento é sempre tão válido quanto o objeto é. Por isso não temos qualquer interferência no conhecimento. Isto resulta da tradição. A natureza do conhecimento foi analisada exaustivamente.

Se é uma ação temos uma escolha, podemos fazer, não fazer, fazer diferente, mas o conhecimento é tão verdadeiro quanto o objeto. Não há escolha, nem acomodação no conhecimento.

Importa também frisar que por um lado, não nos tornamos intolerantes quando afirmamos “aquilo é uma rosa e não um papagaio”. E por outro, também não podemos ser tolerantes com o que é equivocado. A tolerância existe em relação à pessoa, mas no que toca ao conhecimento não há tolerância ou intolerância; há verdade.

Assim, quando os mestres criticavam, criticavam apenas conceitos e não pessoas. Se era uma afirmação errada, era uma afirmação errada, independentemente de ser dita por um sábio ou um ignorante.

Examinar conceitos não é ser intolerante. A tradição védica é uma tradição de ensinamento. E sendo uma tradição de ensinamento, as escrituras são apresentadas na forma de diálogo. Naturalmente, existem questões porque o que está aí, está para ser compreendido. Mesmo quando a fé é envolvida, deve ser examinada.

Por Miguel Homem, instrutor de Yoga (Portugal) - www.dharmabindu.com