domingo, 25 de setembro de 2011

Um olhar diferente sobre a religião


Este texto nasceu inspirado num retiro guiado por Swāmi Dayānanda em março de 2011 na cidade sagrada de Rishikesh, às margens do rio Ganges. O tema desse encontro foi o diálogo entre Yājñavalkya e Maitreyī, da Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad. Embora o assunto religião não seja explicitamente mencionado nesse texto, Swāmijī o trouxe como reflexão durante o retiro, dada sua capital relevância nos dias atuais.

A visão que ele nos transmitiu pareceu-me inovadora, pois dava vigor e um "novo" significado a uma palavra velha, gasta e que perdeu seu sentido original. Assim, quis compartilhar com os amigos leitores essa "descoberta". Para maior clareza nessa exposição, o presente artigo é costurado por algumas citações das aulas de Swāmijī durante esse ciclo de palestras.

Bauls: anarquia e religião.

Os Bauls da Bengala são um grupo de yogis tântricos errantes, músicos e místicos subversivos que têm vagueado incessantemente pelas estradas desse estado oriental da Índia durante os últimos 500 anos. Eles alegram o povo com suas cancões devocionais e estimulam nas pessoas o questionamento filosófico com seus poemas, carregados de ensinamentos metafísicos. Ao longo dos séculos, têm se recusado a aceitar as convenções sociais e religiosas da região onde vivem, ficando igualmente à margem do sistema de castas.

O Baul mais conhecido internacionalmente é Paban Das, que já gravou com grandes nomes da música contemporânea indiana como State of Bengal e teve até um disco produzido por Peter Gabriel. Não obstante a fama adquirida, ele não mudou de estilo de vida e frequentemente participa dos encontros anuais dessa comunidade, durante o festival anual de Makar Sankranti, que acontece à beira do rio Ajoy, na Bengala Ocidental.



Os Bauls tocam instrumentos como o ektara, cordófone feito com um côco, uma vara de bambu e uma corda de aço, o dotar, pequeno sarod de quatro cordas, um tipo de pandeiro simples chamado dubki e o tambor khomok, ambos feitos de couro de lagarto. Andam vestidos com longas túnicas feitas de retalhos, chamadas alkhallas, vivem de esmolas e têm, não surpreendentemente, má fama entre as populações urbanas da Bengala.


Subversivos, anarquistas, por vezes mostrando uma conduta selvagem ou altamente excêntrica, os Bauls preservam uma série de ensinamentos espirituais que vão desde o ascetismo ao prāāyāma, desde a devoção às práticas de sublimação da energia sexual. Eles mantêm um belo e enorme acervo de canções, algumas melancólicas, outras alegres, que transmitem esse corpo de conhecimento de cada geração para a seguinte.

Vivem em peregrinação, de templo em templo e de mesquita em mesquita, mostrando devoção, especialmente por Kṛṣṇa e Rāma, e sendo curiosamente sincréticos em seus ensinamentos, já que não bebem apenas nas fontes de conhecimento do hinduísmo, mas também no sufismo, fonte do conhecimento esotérico islâmico. Olhando desde fora para este grupo de místicos, é fácil se equivocar ao julgá-los: seriam eles religiosos?

Seus poemas são carregados de uma rara combinação de espiritualidade e ceticismo que remete à filosofia de Charvaka, o primeiro pensador cético-materialista da história, que viveu na Índia no século VI a.C., bem como a certas formas de agnosticismo que já aparecem no g Veda. Nesta obra há passagens curiosas, como este hino, em que um ṛṣi se questiona:

"Quem realmente sabe? Quem irá proclamar seu conhecimento? Donde ele surgiu? Como foi criado? Como surgiu a criação? Talvez tenha nascido espontaneamente, talvez não. Aquele que observa desde o mais elevado céu é o único que conhece. Ou talvez não."

Assim, esta forma de espiritualidade tántrica encontra suas raízes numa tradição agnóstica não muito conhecida dos praticantes de Yoga da atualidade, mas que permeneceu viva desde a idade védica. Os Bauls acreditam que Deus não está numa mūrti, num templo ou num lugar sagrado, nem no paraíso nem no que há depois da morte, mas no momento presente, no corpo do próprio ser humano que busca a verdade.

O objetivo deles é descobrir um tesouro interno, chamado o Homem de Ouro, ou o Homem do Coração, Moner Manush. Este tesouro está no coração de todos, esperando para ser revelado. Assim, a medida deles é o ser humano, e não os deuses ou um Deus. Repetimos então a pergunta: os Bauls são religiosos ou não? Para responder adequadamente, deveriamos definir, primeiramente, a palavra religião.

Religare: recolocar junto.

O New Oxford American Dictionary define a palavra religião como "a crença em e adoração de um poder controlador sobrehumano, especialmente um Deus ou deuses", ou ainda como "um sistema particular de fé e adoração". A esta breve explanação, podemos acrescentar que as religiões têm, via de regra, um líder, um fundador ou profeta, um salvador, um dogma inquestionável, um livro sagrado, uma hierarquia e a promessa de dias melhores, na forma de algum tipo de paraíso que aguardaria o fiel mais além da vida.

Hoje em dia, quando religiões monoteístas como o cristianismo ou o judaísmo foram despossuídas da enorme influência e poder que ostentavam no passado, e quando o povo e as próprias instituições tanto sofreram com os abusos de poder perpetrados por alguns líderes, a palavra religião nos parece ultrapassada e obscurantista. Ela é, às vezes, usada para definir algo retrógrado ou notadamente ruim, como quando dizemos que o hiperconsumo é a religião dos tempos modernos, ou que o dinheiro é o novo deus.

Talvez seja hora de reavaliar a visão negativa que temos deste termo. Voltando à origem da palavra, religare, em latim, vemos que ela tem a connotação de reatar, recolocar junto coisas que estavam unidas e foram separadas.  Na Roma antiga, os devotos atavam fitas ou barbantes coloridos nos altares dos templos, como é feito até hoje em alguns lugares da Índia. A palavra parece ter derivado desse costume.

Etimologicamente falando, portanto, ela não é muito diferente da palavra Yoga que, como o amigo leitor bem sabe, significa unir, dentre outras coisas. Em sânscrito não temos uma palavra para dizer religião. A que mais se aproxima é dharma, que também tem uma origem similar. Deriva de dhr, que significa manter atado, ou manter unido. Aliás, para designar a religião conhecida no Ocidente como hinduísmo, em sânscrito, usamos a expressão sanatana dharma, que significa dharma eterno, aquele que não muda.

Qual é a visão que o Vedānta sobre a religião? Swāmi Dayānanda ensina que "a apreciação, a consciência de mim mesmo como um indivíduo que se relaciona com o Todo é o que chamamos de religião. Uma religião é uma relação com a causa, com a origem do Todo".

Aqui vemos que há uma total identidade entre as palavras de Swāmijī e o significado original de palavra religião: unir aquilo que foi separado, por causa da ignorância existencial. Vejamos agora o que significam as palavras indivíduo e Todo na visão do Vedānta.

A árvore e a floresta, o indivíduo e o Todo.

A totalidade que é a floresta inclui as individualidades que são as árvores. Cada árvore está relacionada de maneira diferente com as demais. Todas são interdependentes e se relacionam de maneira única com a totalidade que a floresta é. O indivíduo e a totalidade estão intrinsecamente conectados, já que são da mesma natureza. Essa totalidade é chamada Īśvara.


Cada individualidade contribui para o todo, da mesma forma que cada árvore faz parte da floresta. Cada indivíduo é um contribuidor para a ordem, enquanto pai, mãe, irmão, amigo, etc. A inteligência de Īśvara está em todos e nos torna associados dele na criação.

Cada papel representado no mundo ou na sociedade é relevante e contribui de alguma maneira, por insignificante que possa parecer, para a harmonia do Todo. Ficando cientes disso, eliminamos o senso de separação entre Īśvara e o que somos em termos de corpomente.

Isso nos ajuda a superar não apenas aquele sentimento de sermos a vítima ou a sensação de separação, mas igualmente outros sentimentos indesejáveis, como a exigência de elogio, a falta de humildade, a necessidade de aprovação por parte dos demais, e outras.

Dharma.

O dharma básico é a constatação de que, se nós não queremos ser feridos, não devemos ferir os demais. Para evitar nos colocar em situações indesejáveis, devemos os ater aos valores universais, como este da não-violência, ahi. O mesmo que queremos para nós, devemos querer para outrem. Se temos claro que não queremos ser feridos ou mortos, devemos estender esse mesmo sentimento a todos os demais, sejam humanos ou não. 

Estar em concordância com esses valores universais é se colocar em harmonia com Īśvara. Todos os yamas e niyamas, todos os códigos de conduta em todas as culturas e religiões partem da mesma base. Qualquer valor destes têm a mesma intenção: nos ajudar a usar o livre arbítrio da melhor maneira.

Compreendendo Īśvara.

Swāmijī continua a explanação: "Há algumas confusões em relação à Īśvara, a Deus. Cada pessoa tem uma ideia diferente sobre o que seja Deus. Por isso, preferimos usar a palavra Īśvara, que é mais neutra. Já que a palavra Deus significa coisas diferentes para pessoas diferentes,  precisamos usar outra palavra para apontar para o todo".

Quando Īśvara é bem compreendido, uma vez que compreendemos o nosso papel na ordem, uma vez que temos claras nossas funções na harmonia coletiva, ficamos tranquilos, representando calmamente nossos papéis. Uma mãe educando os filhos, por exemplo, é uma pessoa que se vincula com Īśvara através do amor com que os educa. Essa ocupação não é um emprego, não é um trabalho mecânico. É algo que precisa ser feito, que deve ser feito, de acordo com o dharma materno.

Essa questão dos diferentes papéis que representamos na ordem das coisas é muito dinâmica e flexível. Ela é o resultado das ações que realizamos anteriormente, e que nos levaram através do uso do livre arbítrio às situações que vivemos atualmente. Dentro dessa ordem podemos exercer a nossa liberdade das maneiras mais diversas.

Existe só um Deus?

Swāmi Dayānanda diz ainda que "quando clérigos de algumas religiões dizem "só há um Deus. Não adore outros deuses", estão caindo numa grande contradição. Nós não dizemos que só há um Deus. Dizemos que só há Deus, que tudo o que existe é Deus". Assim, precisamos ter uma compreensão crítica da nossa postura em relação a Īśvara, para ver claramente quais são os obstáculos que nos impedem viver em consciência dele.

Não há separação entre jīva e Īśvara. A alienação não existe, assim como não existe distância entre a árvore e a floresta. Algumas pessoas se sentem desamparadas e ficam se lamuriando, "porque eu? porque eu?", por conta desse sentimento de separação nascido do senso de individualidade. Nessa ordem de coisas, a ignorância sobre a própria identidade enquanto Īśvara deve ser corretamente estabelecida para eliminar estes sentimentos frustrantes.

Práticas para cultivar a humildade.

Para lidar com esses sentimentos, em muitas culturas e religiões existem fórmulas como o nama, a entrega, que têm como objetivo eliminar essa distância aparente entre o indivíduo e o Todo. No islamismo, a palavra usada para dizer prostração, o gesto ritual que os devotos fazem cinco vezes ao dia, é justamente namaz, que tem a mesma raíz que nama em sânscrito, além de significar exatamente o mesmo.

O gesto de reverência feito nas mesquitas é muito similar aos movimentos da saudação ao sol do Yoga, sūrya namaskāra, bem como às práticas de prostração do budismo tibetano. Em todos esses contextos, o fato de colocar a testa no chão aponta para aquilo que o professor Hermógenes definiu uma vez como prática de humildação, ou submeter o orgulho do ego a Īśvara.

Um dos modelos usados ao longo do tempo para explicar isto diz que os cinco elementos da natureza, espaço, ar, fogo, água e terra constituem o corpomente. Esses elementos, por sua vez, são o corpo de Īśvara. Isto nos ajuda a compreender que não há distância entre Īśvara e nosso corpomente.

Os truques da mente  e seu antídoto: a consciência de Īśvara.

Paradoxalmente, precisamos ainda compreender que o senso de separação também faz parte do jogo, da ordem que é Īśvara. Toda emoção, assim, é parte integral da ordem de Īśvara: medo, tristeza, raiva, senso de separação. Não há nada de errado em relação a estas emoções. Elas também são Īśvara
As "boas" qualidades, as desejáveis, que nos lembram da pessoa plena que somos, também são parte integral da ordem de Īśvara, em termos psicológicos.

Swāmijī diz a este respeito: "Īśvara é o superterapeuta que precisamos acessar para eliminar o sentimento de separação em relação ao todo. Īśvara não condena, Īśvara não julga. Īśvara é conhecimento. Todo tipo de conhecimento é Īśvara. Conhecer Īśvara, portanto, resolve este tipo de problema. Compreendendo a ordem piscológica de Īśvara, ficamos em paz".

"Devoção agnóstica" é religião?

Afinal, os Bauls são ou não religiosos? Ano passado tive a oportunidade de assistir o grupo de Paban Das Baul tocando e cantando num festival devocional ao ar livre, na cidade de New Delhi. Tocou-me especialmente a atitude de entrega, quase abandono, com que os músicos tocavam e cantavam. Aquilo era bhakti, devoção, na sua expressão mais pura!

Como não compreendo bangoli, a língua em que eles cantam, não entendi na ocasião o significado daquilo que estava sendo cantado. Porém, lendo posteriormente os poemas no livro de Deben Battacharya The Path of the Mystic Lover: Baul Songs of Passion and Ecstasy, é fácil compreender que eles colocam questionamentos que não se encaixam, de maneira alguma, com aquela definição mais estreita de religião. Reza uma composição de Debdas:


"Quem sabe se os deuses existem?
Você pode encontrá-los no céu?
Ou no Himalaia? Ou na terra, ou no ar?
Deus não pode ser encontrado em nenhum lugar
Senão o coração do buscador da Verdade!"

Porém, desde a definição mais ampla e menos convencional de religião que demos acima, acredito que tanto os Bauls da Bengala como os yogis e estudantes de Vedānta, sejam sim pessoas religiosas. A esse respeito, Swāmi Dayānanda disse: "Todo vedantin é uma pessoa religiosa, mas nem toda pessoa religiosa será necesariamente um vedantin".

Namaste!


Pedro vive de vegetais, surf e prāa. Edita o site www.yoga.pro.br

terça-feira, 26 de julho de 2011

Entrevista: Beto Pandiani


Roberto Pandiani, santista, 53, há 16 anos realiza expedições de alto desempenho pelos mais temidos mares do mundo a bordo de catamarans sem cabine. Filho do também velejador italiano Corrado Pandiani, conquistou prêmios nacionais e internacionais e coleciona marcos vitoriosos na história da vela mundial. No final dos anos 90 deixou a área de entretenimento e assumiu a vela como profissão e negócio, passando a trabalhar exclusivamente com o esporte que é a paixão de sua vida.

As expedições de Roberto Pandiani originaram quatro títulos pela Editora Terra Virgem: Rota Austral, Travessia do Drake, Rota Boreal e o recente Entre Trópicos. Em 2008, foi lançado um DVD da primeira parte da Travessia do Pacífico, e, agora em 2009, será lançada a segunda parte. Em julho de 2009 foi lançado o primeiro livro de histórias, O mar é minha Terra. Atualmente, tem ministrado palestras sobre planejamento, gerenciamento de risco, superação de resultados e trabalho em equipe para grandes empresas.

Vicente Morisson: Como se deu a influência da vela na sua família e depois com você?
Beto Pandiani: Meu pai foi velejador na Itália quando ele era jovem. Ficou registrado isso em mim, mas também sempre tive afinidade com o mar. Nasci em Santos.

VM: O que lhe fez mudar da vida de empresário de grandes casas noturnas de São Paulo dentre outros negócios para se dedicar exclusivamente ao mundo da vela?
BP: O sonho de viajar pelo mundo, qualidade de vida, natureza e a atração pelo desafio, o inesperado e a vida mais simples.

VM: As suas expedições a vela se caracterizaram por navegações feitas com catamaran (embarcação composta por dois cascos e sem cabine). Por qual motivo você optou por esse tipo de embarcação? O que lhe encanta num catamaran?
BP: Minha vida como velejador começou correndo regatas de Hobiecat 16, um pequeno catamaran bem rápido. Depois veio a idéia de viajar em outro catamaran um pouco maior, de 21 pés. A idéia era que um barco como este chegaria a praias que outro barco não chegaria. Coisa que só um barco com pouco calado.


VM: A espiritualidade tem alguma importância na sua vida? Caso sim, o que ela representa para você?
BP: A questão espiritual eu vejo de uma maneira bem própria. Me parece que hoje em dia existe muito turismo espiritual, que é um modismo em teorizar pensamentos, acho válido, pois vejo que é esta surgindo uma consciência nova. Outro aspecto é a separação da vida em material e espiritual. Não consigo ver assim, para mim tudo é espiritual, a vida aqui não pode ser vivida com separação, pois a nossa experiência é no plano físico.

VM: Você tem algum tipo de prática pessoal, como yoga, meditação, etc? Caso sim, qual (is)?
BP: Medito e procuro estar atento a tudo o tempo todo. Estar consciente com os acontecimentos na minha vida.

VM: Imagino que nesse seu histórico de grandes expedições (“Entre Trópicos”, “Rota Austral”, “Travessia do Drake”, “Rota Boreal”, “Travessia do Pacífico”) você já enfrentou algumas situações de risco no mar? Caso sim, como lidou com elas?
BP: Sim, no mar assim como na vida estamos sujeitos a todos os imprevistos. Chamaria isto de imponderável. Aprendi que o imponderável pode ser a nossa oportunidade. Bons marinheiros se formam em mares duros.

VM: Como a sua mente se comporta nesses momentos de dificuldade? Como você faz para mantê-la sob controle?
BP:
Quando uma situação de risco se apresenta eu procuro me concentrar no problema a ser resolvido. Se for uma situação de risco sem nenhum acidente por exemplo, tento também manter o foco no barco, me concentrar ao máximo e procurar mentalizar nós conseguindo chegar onde devemos chegar. É bastante difícil.



VM: Você tem medo da morte? Como a encara?
BP: Não tenho medo de morrer, tenho medo de morrer sem fazer o que tenho que fazer. Encaro a vida como uma viagem no meu barco a vela. O barco é a alma que não para nunca, esta sempre em movimento, e o mar simboliza o emocional, onde o barco navega. Na tempestade, na calmaria ou com vento a favor somos obrigados a aprender a lidar com estas situações, ou que atraímos ou que são inerentes desta natureza.

VM: Você leva algum tipo de experiência do mar para o seu dia-a-dia? Qual (is)?
BP: Sim, acho que respondi esta pergunta na anterior.

VM: Como é dividir o barco com uma outra pessoa, no caso, o Igor Bely? Qual é o segredo para não perder a sintonia?
BP: Vejo que o segredo não é perder a sintonia e sim encontrá-la. Começa antes, na preparação, quando começamos a nos relacionar durante a fase de preparação. Procuramos focar no prazer de fazermos juntos, no bom humor, em compartilhar tudo com respeito. Não somos nada sérios, mas trabalhamos com responsabilidade. A nossa sintonia é o respeito e admiração mutuo que temos um pelo outro.


VM: Quem são as suas grandes referências no mar e fora dele?
BP: Amo o vento, pois é algo que não vemos mas sentimos. O espírito de equipe, a solidariedade, a intuição que você desenvolve são alguns dos elementos que viraram referência para mim.

VM: Você faz algum tipo de dieta especial e acompanhamento nutricional seja ele no dia-a-dia ou focado para alguma expedição?
BP: No dia a dia procuro comer de maneira saudável. No mar temos que comer o nosso cardápio que é bem diferente do dia a dia. Barras energéticas, comida liofilizada, coisas bem calóricas.

VM: Como você vê a relação do homem e o mar hoje em dia? Se há alguma conseqüência negativa ou positiva visível quais seriam elas?
BP: Ainda vejo que o homem esta muito afastado do mar, principalmente, no Brasil. Muitas pessoas sentem medo por não conhecer. Talvez até porque o mar simbolicamente são nossas emoções. Não sei se tem muita gente querendo mergulhar profundamente no oceano de dentro. Falando da preservação, nossos oceanos estão sendo devastados pela pesca predatória e pela poluição. Um cigarro que é jogado no chão vai para o mar. Então é só andar na rua e observar. Estamos bem distantes de nós mesmo. Mas sou otimista e vejo que existe muita gente que pode despertar.

VM: Qual o lugar mais especial que você já navegou?
BP: Não consigo escolher um, mas já que tenho que falar escolho a Antártica.


VM: O que representa o mar para você?
BP: O mar é minha Terra, um lugar amplo, livre. Quando se veleja em mar aberto parece que tem poucas coisas para ver, mas se você prestar atenção descobre um universo nas sutilezas.

VM: O que você mais gosta de fazer nas horas vagas?
BP: Estar em casa com amigos, ler, cinema, e viajar de carro.

VM: Você atua em alguma causa social ou em defesa ao meio ambiente? Caso sim, qual(is)?
BP: Não estou engajado em nenhum movimento social ou de meio ambiente. O meu movimento é interno.

VM: Você poderia contar um pouco sobre como está sendo o processo do novo projeto da travessia da Ártico? Como é trazer isso para a prática? Como foi viabilizar as outras expedições e como está sendo viabilizar essa?
BP: Viabilização é um processo longo que requer paciência, estratégia, dedicação e muita autoconfiança. No primeiro momento você sonha e depois você entra no mundo do pragmatismo, onde o caminho de concretização exige muita energia.

O melhor treino e preparação de uma viagem não é fazer ginástica e ficar velejando na Ilhabela. O grande teste é vender e organizar. Preciso também de um ano no mínimo para interiorizar que me propus a fazer.


VM: O que você considera essencial para se viver bem?
BP: Ser feliz!

VM: Que dica você daria para quem está querendo começar a velejar?
BP: Difícil falar assim tão sinteticamente.

Travessia do Pacífico - Parte 4 - Ilha da Páscoa from Eduardo Teiman on Vimeo.


Mais informações sobre Beto Pandiani: www.betopandiani.com.br

domingo, 10 de julho de 2011

Vedānta x problema existêncial



É comum estarmos sempre correndo atrás dos nossos desejos na tentativa de nos preenchermos de alguma forma. Existem dois tipos de satisfação que são comuns entre nós: artha (segurança) e kama (prazer). Contudo, eles não duram muito. Sempre estaremos nesse jogo de ganhos e perdas na busca dessa satisfação. Se não tivermos a maturidade para entender ambos os lados de uma determinada situação estaremos sempre com uma sensação de insuficiência.

Assim, é importante aprendermos aceitar o resultado das nossas ações, já que o resultado está além do nosso comando. É importante saber relaxar e apreciar aquilo que recebemos como resultado das nossas ações, já que ele pode vir de 4 formas: acontecer exatamente o que prevíamos, acontecer a mais do que prevíamos, acontecer a menos do que prevíamos ou acontecer algo totalmente diferentes do que prevíamos. Mas parece que esquecemos dessas condições quando algo não acontece da forma como imaginávamos.

A insegurança que tenho não pode ser intrínseca a mim, pois ela vem e vai. Se não me libertar dos meus medos e condicionamentos ela continuará presente e me incomodando.


Contudo, quando consigo amar, por um momento, essa sensação desaparece. Por quê? Porque a pessoa que eu quero ser está centrada no Ser. Portanto, para nos livrarmos desse conflito a única solução é o conhecimento do Eu ou auto-conhecimento.

Mudanças acontecem a todo instante, já que nada é permanente e perfeito. Muitas vezes queremos que determinadas situações ou objetos não mudem. Isso é sinal de imaturidade. Enquanto não aprendermos a lidar com essa dança do Universo iremos ficar presos nessa roda e continuaremos sofrendo.

O que muitas vezes esquecemos ou não sabemos é que podemos ser felizes mesmo sem satisfazer os nossos desejos. Não há nada de errado em ter desejos até mesmo porque a insatisfação em relação aos desejos não conquistados é o que nos move em direção à algo, à agir.

O estudo do Ved
ānta, a parte final dos Vedas, nos aponta que aquilo que pode nos preencher já somos nós mesmos. Portanto, sou eu quem deve ser conhecido. Quem sabe eu não sou a solução do problema? Quem sabe os śastras (escrituras) não estão certos? Para isso, é necessário um meio de conhecimento específico chamado brahmavidyā (conhecimento do Ser), que é feito de palavras. Essas palavras quando cuidadosamente usadas apontam para aquilo que eu sou e são o meio de conhecimento. Alguém que seja qualificado pode nos mostrar esse espelho através do uso das palavras.

Olhar no espelho de Vedanta é olhar para si mesmo!

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Será a felicidade plena uma crença?



O uso da palavra “plena ou absoluta” para qualificar a palavra felicidade é uma redundância e isso algumas vezes traz um entendimento errado sobre a busca espiritual. Parece que estamos buscando por algum tipo de experiência que não existe nesse mundo, a “felicidade plena”, algum tipo de estado diferente de consciência.
Quando se usam esses termos, o objetivo é fazer uma diferenciação entre a felicidade, que surge através do contato com objetos, e a felicidade, que se obtém pelo conhecimento do eu. Como os objetos estão em constante movimento e mudança, a felicidade advinda dos mesmos é “temporária” enquanto que a felicidade vinda do conhecimento do “eu” é imutável, já que o “eu” é livre do tempo e do espaço. Este conhecimento é resultado do estudo de Vedānta. Dessa  maneira a busca espiritual não tem como objetivo mais uma experiência no mundo e sim a verdade por de trás de todas as experiências.
Contudo, considerar que “existe a felicidade plena”  ou que “a mesma não exista” estão ambas as opções enquadradas no que chamamos de crença. E de fato, em termos filosóficos, se uma pessoa não sabe a verdade sobre um assunto, ela  é livre para escolher qual das duas crenças quer adotar para si.
Porém, mesmo que se decida acreditar que: “não existe felicidade plena”, não é possível para ninguém agir sem fundamentalmente ter esse objetivo.
Todos nós queremos ser felizes para sempre e incondicionalmente… Não é essa a nossa experiência?!?
Por isso crença por crença, é melhor acreditar que a felicidade existe, se não no mínimo estaríamos sendo incoerentes com nossa forma de agir.
Quando o mestre expõe que todos agem em busca da felicidade plena, ele não está defendendo uma crença, ele está apenas provocando o reconhecimento daquilo que já buscamos, por trás de todas as ações.
E é natural que enquanto o conhecimento do “eu” não se estabelecer, aquilo que é proposto, fica no estado de crença, até que seja entendido como verdadeiro pelo próprio aluno, como em qualquer outro conhecimento.
Desdobrar a verdade sobre o “eu”  é o papel dos Vedas e mais precisamente do Vedānta - a porção final dos Vedas.
Por Jonas Masetti, estudante da tradição védica: www.satsangaonline.com

sexta-feira, 18 de março de 2011

Entrevista: Gloria Arieira


Gloria Arieira é a Diretora Presidente do Vidya Mandir. Em janeiro de 1974 foi para a Índia estudar com Swami Dayananda, que tornou-se seu mestre. Com ele estudou até julho de 1978, retornando então ao Brasil. Além de permanecer no Āśhram Sandeepani Sadhanalaya, um local de estudo e vivência com o mestre, em Mumbai, também estudou em outros āśhrams em Uttarkashi e Rishikesh, norte da Índia. Viajou também para lugares nas várias regiões da Índia, para participar de cursos, palestras e visitas a lugares sagrados, como os templos de Tamil Nadu e Kerala, conhecendo melhor a tradição cultural e religiosa dos Vedas.


Desde seu retorno, vem ensinando Vedānta e Sânscrito no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil e também no Porto, em Portugal. Dedica-se também ao trabalho de tradução para o Português dos textos em Sânscrito, como a Bhagavadgītā, Upanishads e vários outros. É responsável pela publicação em português dos livros de Swami Dayananda, editados pela Vidyamandir Editorial, e de dois outros livros: Orações Milenares e Pūja - a realização de um ritual védico.


Vicente Morisson: Quando você se interessou pelo estudo do Vedānta e por quê?
Gloria Arieira: Eu buscava respostas para questões sobre a vida - como alcançar a paz definitiva e sobre a existência de Deus, e principalmente sobre o objetivo último de se viver a vida. Tinha uns 18 anos e não encontrei respostas claras em filósofos nem em religiões. Comecei a praticar yoga e meditação, antes me tornei vegetariana e questionei muito sobre a importância da verdade e da sinceridade. Um dia, conheci Vedānta através de um swami que veio ao Brasil por 2 dias; foi o Swami Chinmayanandaji. Foi a minha sorte grande na vida! O que ele falou fez tanto sentido que resolvi estudar mais com ele, na Índia.


VM: Como foi estudar na Índia nos anos 70? Você sofreu algum tipo de dificuldade por ser jovem, mulher e ocidental?
GA: Fui para Índia em janeiro de 1974. Ainda no Brasil, em minha busca, conheci uma pessoa que tinha as mesmas questões que eu. Nos casamos, conhecemos Vedānta juntos e fomos para Índia. Acho que foi mais fácil para mim por ter ido casada. Apesar de que ficamos separados no āśram, vivendo a vida de estudantes, brahmacaris e brahmacarinis.


Vida de āśram e de estudo intensivo de Vedānta não é fácil, principalmente na Índia, onde a cultura é tão diferente da nossa. Mas eu queria muito estudar e me adaptar, por isso não foi difícil.



VM: Você pensou em viver na Índia de forma definitiva?
GA: Eu pensava em viver na Índia depois que o curso acabasse pois eu tinha me adaptado plenamente e gostava da cultura. Mesmo durante o curso dei aulas para algumas pessoas e até para crianças indianas sobre a cultura e seu significado. Mas bem no final do curso eu pensei que como poderia ter nascido na Índia e não nasci, teria uma razão maior para ter nascido no Brasil. Eu deveria voltar e ensinar Vedānta em português às pessoas que não poderiam fazer o que eu fiz. Então voltei. Cheguei de volta ao Brasil no final de setembro de 1978.


VM: O que mais significativamente mudou para você ao compreender o significado do conhecimento do Vedānta?
GA: O principal foi o relaxamente interno ao encontrar respostas para todas as minhas questões sobre mim mesma, sobre a vida, sobre Deus.


VM: Qual é importância de um professor no aprendizado desse conhecimento?
GA: Um professor ou professora é fundamental. Primeiro porque existe mais do que está escrito nos textos, que são as explicações da tradição oral, que só uma pessoa que estudou com um professor que estudou com outro é que terá acesso.


Além disso, o autodidata tem grandes chances de aumentar e fortalecer seu ahamkāra; fortalecendo o ego, o eu falso, é difícil reconhecer o verdadeiro.



VM: Você tem alguma prática pessoal? Caso sim, como ela é?
GA: Estudo, medito, faço japa e cantos védicos diariamente. Além de dividir o conhecimento de Vedānta com outras pessoas, ensinando.


VM: Qual é o objetivo da meditação? Que dica você daria para quem está querendo começar a meditar?
GA: A forma mais efetiva de meditação é japa, a repetição de um mesmo mantra, com todos os detalhes que a técnica inclui.


A meditação tem como objetivo último a descoberta da paz que é nossa natureza. Por isso, desde o início, a meditação tem que ser algo agradável. Se não for, algo está sendo feito erradamente.


VM: Qual é a relação que podemos encontrar entre o Vedānta e o Yoga?
GA: Yoga é, desde sempre, nos Vedas, um estilo de vida que inclui muitas práticas e atitudes para preparar a pessoa para o autoconhecimento, que é Vedānta.



VM: Já que o nosso blog explora também o universo do mar e por você morar no Rio de Janeiro ele tem alguma importância para você?
GA: Eu moro bem perto do mar, ele sempre esteve presente em minha vida. Foi o meu primeiro lugar de meditação. O mar é um deva, uma expressão de Īśvara, é uma fonte de inspiração por sua força, grandeza e profundidade. Ele tem vida e se expressa através de seu constante movimento.


VM: Como é a sua relação com a religião?
GA: O estudo de Vedānta não exige que a pessoa seja religiosa. Eu me tornei hindu por opção, porque as práticas da religião hindu fizeram sentido para mim.


VM: Você já enfrentou alguma situação de risco de vida? Como encara a morte?
GA: Já encarei situação de risco de vida. Encaro a morte como o fim de uma vida; e a vida somente acaba quando o que se veio fazer aqui já foi feito. É então um momento inevitável e natural, ainda que de grande expectativa, pois nada sabemos a respeito diretamente. Culturalmente pensamos muito na vida e como aumentar sua duração, devemos pensar e entender mais sobre a morte que é natural e inevitável.


VM: Quem são as suas grandes referências no estudo do Vedānta?
GA: Minhas referências são meus mestres diretos, Swami Dayananda e Swami Chinmayananda e o grande mestre de todos nós que estudamos Advaita Vedānta – Śri Shankara. Também tenho meus colegas de estudo do tempo do āśram como referência; encontro com alguns deles ainda. O mestre do Swami Chimayananda, chamado Swami Tapovan, foi também uma inspiração durante meus estudos.


VM: Qual é a sua preferência alimentar? Você faz algum tipo de acompanhamento nutricional?
GA: Sou vegetariana; incluo leite e derivados em minha alimentação. Exames de sangue regulares dizem que a alimentação vegetariana tem dado certo para mim.


VM: De uma maneira geral como você vê a relação entre o homem e o meio em que ele vive atualmente?
GA: O ser humano depende da natureza para sua sobrevivência. A natureza reage conforme a atuação do ser humano. Há uma dependência mútua entre os dois. Como ser humano, devemos reconhecer tudo o que recebemos da natureza, ser gratos a ela e expressar essa gratidão através de ato de cuidado para com ela. Cuidar dela é cuidar de nós mesmos e de nossa paz e bem estar. É necessária uma maturidade para entender isso e agir de acordo com esse entendimento. Definitivamente a natureza não foi criada para nosso consumo!


VM: Qual o lugar mais especial que você já visitou e por quê?
GA: Já visitei alguns lugares significativos e especiais. O mais especial foi o templo de Venkateshvara em Tirupati, perto de Chennai, India. Desejei e tentei visitar esse templo inúmeras vezes, desde 1975. Só consegui ir em setembro de 2007. Foram muitos anos de desejo e expectativa que tornaram o momento ainda mais especial.


VM: Que dica você daria para aquelas pessoas que compreendem o conteúdo do ensinamento do Vedānta, mas tem dificuldade de colocá-lo em prática no momento oportuno? Como fazemos para trazer a acomodação?
GA: O estudo de Vedānta é sobre o eu absoluto que é livre de limitação, que é pleno. Quando descobrimos esse eu, há muitas vezes a expectativa ou fantasia de ser perfeito como pessoa. Não conseguimos acomodar a nós mesmos com nossas limitações, imperfeições e dificuldades, então não acomodamos os outros nem as situações não desejadas que surgem. Quando acomodamos a pessoa relativa em nós, lidamos melhor com o mundo e com o outro, em conseqüência.




VM: Existe algum desafio no seu trabalho hoje?
GA: Cada aula é para mim um desafio, em poder transmitir, com clareza, em português, para um grupo de pessoas atentas sentadas à minha frente, o que está dito nos textos em sânscrito e explicado pela tradição oral.


VM: O que você considera essencial para se viver bem?
GA: Ser uma pessoa coerente, sincera e discriminativa.


VM: Que dica você daria para quem está querendo se aprofundar no estudo do Vedānta?
GA: Procure uma pessoa que possa lhe ensinar, sente e escute o ensinamento, não negligencie a sua vida diária e o que deve ser feito por você. Tente entender a natureza de Īśvara e busque proteção para lidar com humildade com seus sucessos e conquistas.


Maiores informações sobre Gloria Arieira: www.vidyamandir.org.br