sexta-feira, 18 de março de 2011

Entrevista: Gloria Arieira


Gloria Arieira é a Diretora Presidente do Vidya Mandir. Em janeiro de 1974 foi para a Índia estudar com Swami Dayananda, que tornou-se seu mestre. Com ele estudou até julho de 1978, retornando então ao Brasil. Além de permanecer no Āśhram Sandeepani Sadhanalaya, um local de estudo e vivência com o mestre, em Mumbai, também estudou em outros āśhrams em Uttarkashi e Rishikesh, norte da Índia. Viajou também para lugares nas várias regiões da Índia, para participar de cursos, palestras e visitas a lugares sagrados, como os templos de Tamil Nadu e Kerala, conhecendo melhor a tradição cultural e religiosa dos Vedas.


Desde seu retorno, vem ensinando Vedānta e Sânscrito no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil e também no Porto, em Portugal. Dedica-se também ao trabalho de tradução para o Português dos textos em Sânscrito, como a Bhagavadgītā, Upanishads e vários outros. É responsável pela publicação em português dos livros de Swami Dayananda, editados pela Vidyamandir Editorial, e de dois outros livros: Orações Milenares e Pūja - a realização de um ritual védico.


Vicente Morisson: Quando você se interessou pelo estudo do Vedānta e por quê?
Gloria Arieira: Eu buscava respostas para questões sobre a vida - como alcançar a paz definitiva e sobre a existência de Deus, e principalmente sobre o objetivo último de se viver a vida. Tinha uns 18 anos e não encontrei respostas claras em filósofos nem em religiões. Comecei a praticar yoga e meditação, antes me tornei vegetariana e questionei muito sobre a importância da verdade e da sinceridade. Um dia, conheci Vedānta através de um swami que veio ao Brasil por 2 dias; foi o Swami Chinmayanandaji. Foi a minha sorte grande na vida! O que ele falou fez tanto sentido que resolvi estudar mais com ele, na Índia.


VM: Como foi estudar na Índia nos anos 70? Você sofreu algum tipo de dificuldade por ser jovem, mulher e ocidental?
GA: Fui para Índia em janeiro de 1974. Ainda no Brasil, em minha busca, conheci uma pessoa que tinha as mesmas questões que eu. Nos casamos, conhecemos Vedānta juntos e fomos para Índia. Acho que foi mais fácil para mim por ter ido casada. Apesar de que ficamos separados no āśram, vivendo a vida de estudantes, brahmacaris e brahmacarinis.


Vida de āśram e de estudo intensivo de Vedānta não é fácil, principalmente na Índia, onde a cultura é tão diferente da nossa. Mas eu queria muito estudar e me adaptar, por isso não foi difícil.



VM: Você pensou em viver na Índia de forma definitiva?
GA: Eu pensava em viver na Índia depois que o curso acabasse pois eu tinha me adaptado plenamente e gostava da cultura. Mesmo durante o curso dei aulas para algumas pessoas e até para crianças indianas sobre a cultura e seu significado. Mas bem no final do curso eu pensei que como poderia ter nascido na Índia e não nasci, teria uma razão maior para ter nascido no Brasil. Eu deveria voltar e ensinar Vedānta em português às pessoas que não poderiam fazer o que eu fiz. Então voltei. Cheguei de volta ao Brasil no final de setembro de 1978.


VM: O que mais significativamente mudou para você ao compreender o significado do conhecimento do Vedānta?
GA: O principal foi o relaxamente interno ao encontrar respostas para todas as minhas questões sobre mim mesma, sobre a vida, sobre Deus.


VM: Qual é importância de um professor no aprendizado desse conhecimento?
GA: Um professor ou professora é fundamental. Primeiro porque existe mais do que está escrito nos textos, que são as explicações da tradição oral, que só uma pessoa que estudou com um professor que estudou com outro é que terá acesso.


Além disso, o autodidata tem grandes chances de aumentar e fortalecer seu ahamkāra; fortalecendo o ego, o eu falso, é difícil reconhecer o verdadeiro.



VM: Você tem alguma prática pessoal? Caso sim, como ela é?
GA: Estudo, medito, faço japa e cantos védicos diariamente. Além de dividir o conhecimento de Vedānta com outras pessoas, ensinando.


VM: Qual é o objetivo da meditação? Que dica você daria para quem está querendo começar a meditar?
GA: A forma mais efetiva de meditação é japa, a repetição de um mesmo mantra, com todos os detalhes que a técnica inclui.


A meditação tem como objetivo último a descoberta da paz que é nossa natureza. Por isso, desde o início, a meditação tem que ser algo agradável. Se não for, algo está sendo feito erradamente.


VM: Qual é a relação que podemos encontrar entre o Vedānta e o Yoga?
GA: Yoga é, desde sempre, nos Vedas, um estilo de vida que inclui muitas práticas e atitudes para preparar a pessoa para o autoconhecimento, que é Vedānta.



VM: Já que o nosso blog explora também o universo do mar e por você morar no Rio de Janeiro ele tem alguma importância para você?
GA: Eu moro bem perto do mar, ele sempre esteve presente em minha vida. Foi o meu primeiro lugar de meditação. O mar é um deva, uma expressão de Īśvara, é uma fonte de inspiração por sua força, grandeza e profundidade. Ele tem vida e se expressa através de seu constante movimento.


VM: Como é a sua relação com a religião?
GA: O estudo de Vedānta não exige que a pessoa seja religiosa. Eu me tornei hindu por opção, porque as práticas da religião hindu fizeram sentido para mim.


VM: Você já enfrentou alguma situação de risco de vida? Como encara a morte?
GA: Já encarei situação de risco de vida. Encaro a morte como o fim de uma vida; e a vida somente acaba quando o que se veio fazer aqui já foi feito. É então um momento inevitável e natural, ainda que de grande expectativa, pois nada sabemos a respeito diretamente. Culturalmente pensamos muito na vida e como aumentar sua duração, devemos pensar e entender mais sobre a morte que é natural e inevitável.


VM: Quem são as suas grandes referências no estudo do Vedānta?
GA: Minhas referências são meus mestres diretos, Swami Dayananda e Swami Chinmayananda e o grande mestre de todos nós que estudamos Advaita Vedānta – Śri Shankara. Também tenho meus colegas de estudo do tempo do āśram como referência; encontro com alguns deles ainda. O mestre do Swami Chimayananda, chamado Swami Tapovan, foi também uma inspiração durante meus estudos.


VM: Qual é a sua preferência alimentar? Você faz algum tipo de acompanhamento nutricional?
GA: Sou vegetariana; incluo leite e derivados em minha alimentação. Exames de sangue regulares dizem que a alimentação vegetariana tem dado certo para mim.


VM: De uma maneira geral como você vê a relação entre o homem e o meio em que ele vive atualmente?
GA: O ser humano depende da natureza para sua sobrevivência. A natureza reage conforme a atuação do ser humano. Há uma dependência mútua entre os dois. Como ser humano, devemos reconhecer tudo o que recebemos da natureza, ser gratos a ela e expressar essa gratidão através de ato de cuidado para com ela. Cuidar dela é cuidar de nós mesmos e de nossa paz e bem estar. É necessária uma maturidade para entender isso e agir de acordo com esse entendimento. Definitivamente a natureza não foi criada para nosso consumo!


VM: Qual o lugar mais especial que você já visitou e por quê?
GA: Já visitei alguns lugares significativos e especiais. O mais especial foi o templo de Venkateshvara em Tirupati, perto de Chennai, India. Desejei e tentei visitar esse templo inúmeras vezes, desde 1975. Só consegui ir em setembro de 2007. Foram muitos anos de desejo e expectativa que tornaram o momento ainda mais especial.


VM: Que dica você daria para aquelas pessoas que compreendem o conteúdo do ensinamento do Vedānta, mas tem dificuldade de colocá-lo em prática no momento oportuno? Como fazemos para trazer a acomodação?
GA: O estudo de Vedānta é sobre o eu absoluto que é livre de limitação, que é pleno. Quando descobrimos esse eu, há muitas vezes a expectativa ou fantasia de ser perfeito como pessoa. Não conseguimos acomodar a nós mesmos com nossas limitações, imperfeições e dificuldades, então não acomodamos os outros nem as situações não desejadas que surgem. Quando acomodamos a pessoa relativa em nós, lidamos melhor com o mundo e com o outro, em conseqüência.




VM: Existe algum desafio no seu trabalho hoje?
GA: Cada aula é para mim um desafio, em poder transmitir, com clareza, em português, para um grupo de pessoas atentas sentadas à minha frente, o que está dito nos textos em sânscrito e explicado pela tradição oral.


VM: O que você considera essencial para se viver bem?
GA: Ser uma pessoa coerente, sincera e discriminativa.


VM: Que dica você daria para quem está querendo se aprofundar no estudo do Vedānta?
GA: Procure uma pessoa que possa lhe ensinar, sente e escute o ensinamento, não negligencie a sua vida diária e o que deve ser feito por você. Tente entender a natureza de Īśvara e busque proteção para lidar com humildade com seus sucessos e conquistas.


Maiores informações sobre Gloria Arieira: www.vidyamandir.org.br

terça-feira, 8 de março de 2011

O Ser é existência, conhecimento e plenitude



Os mahavākyas, as grandes afirmações védicas, são palavras especiais que revelam, ou melhor, apontam, para o Ser ilimitado, Brahman. A Taittīrīya Upaniṣad, no Brahmavalli II:1, contém uma dessas grandes sentenças: Oṁ brahmavidapnoti pāram tadesabhyukta satyam jñānānantam Brahma. Traduzindo, isto significa: "Aquele que conhece Brahman, "alcança" o mais alto. Então, é dito: "Brahman é existência, conhecimento e plenitude".


Colocamos a tradução da palavra "alcança" entre aspas pois, para conhecer Brahman (i.e., a nós mesmos), não é necessário sair do lugar onde estamos, pois não há ações de nenhum tipo envolvidas, como veremos mais adiante.


É sabido que o objetivo do estudante dos Vedas, assim como o objetivo do Yoga, é mokṣa, a libertação. Isso significa a total eliminação do saṃsāra. A morte do corpo físico não é o fim do saṃsāra pois, após essa morte, há novos nascimentos, mesmo que eles aconteçam noutros planos (lokaḥ).


Saṃsāra tampouco é sinônimo de estar vivo. Estar vivo não é um obstáculo para mokṣa. Até mesmo os obstáculos e dificuldades da vida não são a fonte do sofrimento, pois ela seria completamente monótona e sem objetivo não fosse por estas superações.


A verdadeira causadora do sofrimento é a mente, pois ela projeta as expectativas em relação a desejos inúteis. Essas expectativas têm como base a ignorância em relação a quem eu sou. No entanto, cultivando a objetividade perante a vida, bem como o entendimento da Realidade, podemos eliminar o saṃsāra.


Na frase Brahman é existência, conhecimento e plenitude, as palavras não qualificam nem descrevem Brahman, já que este não é um objeto, mas indicam (lakshanam), através de pontos claros, aquilo que deve ser conhecido.


A princípio, vemos Brahman como um objeto a ser conhecido, diferente daquilo que somos. Então a primeira frase do verso se torna clara: Aquele que conhece Brahman, "alcança" o mais alto. Na verdade, não me é possível “alcançar” aquilo que já sou. Apenas reconheço o que sou. Nada mais.


Ilustro esta peculiar situação com uma estorinha que me foi narrada por Swāmi Dayānanda, meu mestre: dez meninos atravessam um rio. Um deles é o responsável pelo grupo. Ao chegarem à outra margem, o líder conta o grupo, para ver se todos estão ali. Porém, ele só conta nove crianças. Fica desesperado achando que um deles tinha sido arrastado pela correnteza. Vendo seu desespero, um senhor aproxima-se e lhe pergunta pela causa da aflição. O menino lhe explica a situação. Vendo tudo de forma clara, o senhor lhe mostra que ele está esquecendo de contar a si mesmo.


Neste exemplo, constatamos que não precisou ser criado o décimo menino: ele já estava lá. O que acontece é apenas entendimento, compreensão. Este entendimento não é fruto de uma ação. Similarmente, o autoconhecimento já traz embutido em si mesmo um resultado que não é diferente dele mesmo.


As ações, por sua vez, precisam ser feitas. Seus frutos são objetos diferentes delas mesmas (karma-kartaṁ-karāṇaḥ). Mas isso não significa que as ações sejam intrinsecamente ruins, nem que devamos renunciar a elas. Mesmo agindo, ainda há o risco de que o resultado não seja o esperado. Considera-se na nossa tradição, que o resultado da ação seja de quatro tipos:


1. A criação (utpati) – uma ação pode criar uma coisa nova.
2. Purificação (saṁskāra) – a purificação do corpo.
3. Modificação (vikāra) – a modificação de um objeto.
4. Alcançar alguma coisa (apti) – se mover de um lugar para outro.


Estes resultados são todos diferentes de mokṣa. Há obras na nossa tradição que falam sobre as ações como formas de se alcançar um resultado. A Kaṭha Upaniṣad, por exemplo, diz que “pelo caminho do sol, se alcança um resultado”. Mas em nenhum lugar as Upaniṣads dizem que este resultado seja diferente daquilo que você já é.


A tradição, chamada Śruti, nos fala sobre certos rituais, que podem gerar resultados desejáveis. Mas apegar-se constantemente a estes resultados mantém a pessoa condicionada. Ela age pelo desejo de alcançar aquele resultado que lhe traz conforto ou prazer (artha ou kāma).


Ātma não é um lugar ou objeto a ser alcançado, pois já está em todo lugar. Então como posso dizer: “ir para algum lugar?”A pessoa que está indo e o lugar que ela vai, são a mesma e única coisa. O problema é não reconhecer isto.


Através deste argumento entendemos que mokṣa não é algo a ser alcançado. Mokṣa é nosso estado natural. Porque um objeto a ser alcançado é sempre diferente de nós mesmos, ou seja, tão limitado quanto outro objeto qualquer. Um lugar que seja para ser alcançado por um “viajante” para onde ele está indo, deve ser diferente do viajante. Pois senão, não há a necessidade de ir a lugar algum.


O papel do Veda é revelar aquilo que os nossos sentidos e mente não podem e não conseguem perceber. Veda é o pramāṇa, o meio de conhecimento para o Ser. O Veda aborda tanto o dvaita como o advaita: o que é dual e o que é não-dual. Sem negar a dualidade da nossa existência samsárica, o Veda é a autoridade que revela o não-dual.


O argumento das pessoas (karmatas) que afirmam que as ações trazem libertação é que existem textos que falam sobre o valor da ação. Como o Veda fala sobre a importância das ações rituais, eles, equivocadamente afirmam que os jñānis estão indo contra o Veda. Mas para os jñānis, qualquer outro eventual lugar paradisíaco que possa ser alcançado pelo mérito das ações rituais feitas nesta vida é apenas transitório e, portanto, não é mokṣa.


Estes textos que falam em gati estão apenas focando no fruto da ação (kārya Brahman). Então os objetos alcançados também são Brahman. Mas isto não é o fim. O Veda vai mais fundo. Então não se pode considerar somente esta primeira etapa. A realidade é uma só, e essa realidade é Brahman. O real é uno, apesar das diferentes manifestações. Este é o ensinamento da Śruti. Qualquer tipo de combinação entre ação e conhecimento é impossível porque a natureza de ambos é oposta.


O conhecimento é aquele que o assunto é a dissolução total do objeto e suas diferenças. O conhecimento mostra que as diferenças são apenas ilusórias. E em relação à ação o conhecimento se opõe. A ação é alcançada através de alguém, ou seja, alguém faz alguma coisa para alcançar um objetivo. Então neste caso vemos três objetos diferentes (a pessoa, a ação e o objeto a ser alcançado).


Quando se fala em conhecimento não há diferença, pois aquele que conhece, conhece a si mesmo. Todo este raciocínio vai nos levar à conclusão de que uma das duas posturas, a dual ou a não-dual, é falsa. O dual é o falso, pois é aparente e depende do não-dual para existir. A dualidade é fruto da ignorância e por isso mesmo dizemos que ela é real. Concluindo, lembremos que, na visão dos Vedas, as ações são apenas um meio, um sādhana para antaḥkarāṇaśuddhi, a purificação do psiquismo que, por sua vez, ainda é, apenas, uma preparação para o autoconhecimento.


Por Bruno Jones, professor de Yoga (RJ) - www.issoeyoga.blogspot.com